“Partidas, para onde este bilhete me leva?”: alteridade e atuação contemporânea
Resumo
O estreitamento das relações entre vida e arte no teatro contemporâneo oferece a oportunidade para o ator fazer da sua criação uma viagem para fora de si, descobrindo outros modos de agir no mundo. No entanto, dentro de um contexto ficcional, esse esforço será em vão sem a atualização das perspectivas de “personagem”, “corpo”, “ação” e “presença cênica”, formuladas pela tradição dramática. O artigo levanta essas questões através de comentários acerca de um experimento cênico chamado Partidas: para onde este bilhete me leva?, criado a partir de uma conferência de Mia Couto e integrante do espetáculo O Futuro por metade: variações cênicas sobre a mesma conferência (2012). Nele, as questões relacionadas à alteridade levantadas pelo escritor moçambicano se desdobraram num dispositivo que desafiou duas atrizes a encontrarem, numa mesma matriz ficcional, lógicas e sensibilidades sempre renovadas. Em última instância, o experimento era uma improvisação submetida a interferência de bilhetes que eram entregues às atrizes por um provocador externo. Os bilhetes continham tarefas precisas e inusitadas, que deveriam ser realizadas em cena sempre como resposta a uma ação da parceira ou a algum evento casual. Condicionar a realização de algo já estabelecido a algo ainda desconhecido desestabilizou a relação de controle entre o agente e o ato - marca de um sujeito logocentrado - o que gerou as condições para o surgimento de outros e insuspeitados modos de afetar e se afetar naquela situação. Verificou-se que a “personagem”, naquele experimento, só era possível de ser compreendida enquanto possibilidades das atrizes a partir de um reconhecimento sempre renovado de si mesmas, da outra com quem contracenavam e da própria situação. Neste contexto, a “ação” foi abordada como efeito e agenciamento de um “corpo” que se constitui provisoriamente e que, por sua vez, se torna “presente” somente enquanto ausência de um sujeito fixamente identificado. Tal perspectiva de atuação exigiu mudanças, também, na qualidade perceptiva das atrizes, que permitiu o rompimento com padrões estabelecidos pela alta excitação de nosso dia a dia, que estreitam a existência humana a um conjunto de mecanismos comportamentais automatizados. Assim sendo, o experimento com os bilhetes aponta, também, caminhos para a elaboração de uma dimensão ética e política para a atuação na contemporaneidade.
alteridade; atuação contemporânea; improvisação; subjetividade
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