Caindo no real — notas sobre Welfare, de Frederick Wiseman

Resumo

Não animamos simplesmente as imagens com o olhar; por vezes, são elas que estão vivas e somos nós os fan- tasmas convocados para o teatro em que elas se engen- dram. Nesse caso, não é tanto de uma ligação afectiva entre o olhar e a imagem que se trata, mas sim de uma nova condição relacional: o olhar e a imagem estão numa relação recíproca. Tal condição produz-se, muito rara- mente, devido à possibilidade que a arte tem de albergar movimentos semelhantes aos do mundo de todos os dias, conseguindo dessa forma corporalizar (dar corpo) à esta- bilidade extática que se experimenta na vida em si mes- ma. Neste artigo, procuraremos entender o cinema justa- mente como uma unidade de opostos, na qual a imagem e o observador se situam entre mundos. Dessa particular tensão brota uma condição relacional, na qual se esbatem as fronteiras entre o material e o imaterial, entre o mundo e a sua representação, entre o corpóreo e o fantasmático. No que à relação entre o olhar e o real diz respeito, o de- senho, a fotografia e o cinema sempre se pautaram pelo mesmo desejo de espacializar o movimento, resgatan- do-o do tempo. A imemorial correlatividade entre estas grafias do visível, ou aquilo que as assemelha enquanto gestos de aproximação do real, subtrai-se à disposição

essencialmente técnica da imagem fotográfica. No en- tanto, seria pobre não ter em conta a relação institucional que a fotografia, enquanto corpo ou suporte, permite es- tabelecer com as imagens da vida que ‘aprisiona’ no seu interior. O ‘teatro filmado’ de Frederick Wiseman serve- -nos de mote para pensar essa rara tensão relacional que o cinema consegue estabelecer com a instituição total que é a vida. É do espaço de representação inaugurado em Welfare (1975) — ou, mais exactamente, dos primeiros dois minutos do filme — que nos propomos aqui a tratar. Com efeito, foi nesse filme que o cinema de Wiseman se revestiu pela primeira vez com uma segunda ‘pele’. Sur- ge um interesse pelo corpo invisível, pelo não-dito, pelo não-ser em qualquer imagem. O observador deixa de ser um mero contemplador distanciado da vida dos outros (fly on the wall) e passa a ser um fantasma presente no es- paço (ghost in the shell). De que tipo de observação fala- mos, quando falamos de um certo tipo de corpo, que cai no interior de um filme tão real como a própria realidade? É a produção desse corpo observante e fantasmático que aqui abordaremos.

Frederick Wiseman | Welfare | cinema | relação | transparência

Biografia Autor

Pedro Florêncio, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

É Assistente Convidado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova (onde lecciona História do Cinema). É docente na ETIC — Escola de Tecnologias Inovação e Criação (onde lecciona Documentário), Portugal, e na Escola Profissional Jean Piaget, Almada (onde lecciona Representação Espacial). É autor do livro Esculpindo o Espaço. O cinema de Frederick Wiseman (Edições Húmus), de capítulos de livros, e de artigos publicados dispersamente. Recebeu 12 prémios como realizador e argumentista.

Publicado
2020-12-04
Como Citar
Florêncio, P. (2020). Caindo no real — notas sobre Welfare, de Frederick Wiseman. Revista De Comunicação E Linguagens, (53). Obtido de https://rcl.fcsh.unl.pt/index.php/rcl/article/view/10